Calabar: o elogio da traição
Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra
Peça teatral
sobre a traição de Calabar, personagem da história brasileira que foi considerado traidor por
ficar ao lado dos holandeses na guerra contra Portugal.
Na década de 70, a dramaturgia nacional era alvo do
mesmo patrulhamento que cerceava a liberdade de músicos, políticos,
escritores, educadores e tantos outros. É neste contexto que dois importantes
artistas escrevem uma das páginas mais importantes do teatro brasileiro
contemporâneo. Exemplo de utilização da matéria histórica como instrumento
gerador de reflexão, Calabar - o elogio da traição, de Chico Buarque
de Hollanda e Ruy Guerra, é relançado pela Civilização Brasileira com novo
projeto gráfico.
Calabar - o elogio da traição, escrita justamente entre os
anos de 1972 e 1973, no auge da ditadura militar brasileira e as vésperas do
abril florido da revolução portuguesa — o que criou obstáculos à montagem
da peça — é uma alegoria
histórica que se passa na época das invasões holandesas em Pernambuco, no
século XVII. Aborda a questão da lealdade e da traição, numa clara
alusão à conjuntura política do período em que foi escrito. Inclui canções
famosas de Chico Buarque, como Anna de Amsterdã e Bárbara.
Com sensibilidade e inteligência, a peça amplia
o debate ideológico de forma provocativa, irônica, quase caricatural. Os
conceitos de traidor e traição, se subjetivos per se, tornam-se ainda
menos palpáveis na obra de Chico e Ruy. Afinal, onde está a traição: nos mantenedores da ordem ou
na rebeldia dos heróis? E quem são, de fato, os heróis e os vilões? Como
escrevia Fernando Peixoto, em 1980, o texto de Calabar - o elogio da traição
é "mal-comportado, e por isso estimula a elaboração de um espetáculo debochado,
capaz de assumir a quase anárquica, mas organizada colagem e a justaposição de
imagens e épocas".
Com Calabar - o elogio da traição, visam
divertir o público, espalhando pontos de interrogação, dúvidas e perplexidades.
Surpreendendo pelo atualizado deboche crítico, fundamentado num confronto
realista com temas essenciais de nossa existência de nação
social-econômica-política- culturalmente ainda colonizada num tímido mas
empenhado esforço de construção de uma democrática cultura nacional-popular.
Há sensibilidade e inteligência na utilização da
matéria histórica como instrumento capaz de instaurar uma consequente
reflexão que ultrapassa os limites de determinadas circunstâncias
político-econômicas e amplia o debate ideológico de forma irônica, provocativa,
apoiada em extrema e contagiante teatralidade, usando a postura crítica e a
desmedida coragem de assumir o grotesco. A obra desmistifica o conceito de traidor e a noção vazia e
abstrata de traição.
Texto escolhido
"E se vocês rirem de mim,
Se eu for alvo de chacotas e chalaças,
Se for ridículo na jaqueta de veludo
Ou nas ceroulas de brim,
Ou porque falo tanto de caganeira e bacalhau,
É bom pensarem duas vezes, porque, ainda mesmo assim,
Com lombrigas dançando dentro da barriga,
Com a Holanda, a Espanha e toda a intriga,
Eu sou aquele que, custe o que custar,
Acerta o laço e tece o fio
Que enforca Calabar."
ü Em termos mais
teóricos, podemos dizer que a obra de Chico Buarque seria um exemplo do grau
zero da escrita e da fala, cujo
valor simbólico reside na palavra em estado puro. Afinal, sua língua,
fugindo a toda caracterização absoluta, faz as próprias regras, normas e
significado, o que aproxima a sua escrita ora da metáfora, ora da metonímia,
ora da sinédoque, ora inda da ironia.
ü Essa escrita tão
singular traz em si, no entanto, a marca da polifonia. Pode-se
dizer de Chico Buarque o que Mário de Andrade
dizia de si mesmo: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta. Cantor,
compositor, poeta, teatrólogo e romancista, Chico Buarque é um artista ímpar no
Brasil contemporâneo. Poucos produziram obra tão ampla e variada quanto a sua.
Mas, em meio a todos esses Chicos, parece haver um que, curiosamente, permanece
invisível. Talvez, porque óbvio demais, familiar demais. Trata-se do Chico
Buarque arquiteto. Chico Buarque opera como um arquiteto das palavras,
constantemente a (re)construir sua escrita. Essa preocupação com a linguagem
manifesta-se em vários momentos de sua obra.
ü Pode-se, então,
imaginar um quadro de correspondências entre os temas e os tropos a arquitetar
(no sentido de estruturar) a obra poético-musical de Chico Buarque:
CALABAR - Canção de protesto | Metáfora
da revolução
§ Coincidindo com o
momento mais embrutecido da ditadura militar no Brasil, a produção artística de Chico durante este período
será marcada por obras de expressiva dramaticidade poética, musical e
literária, tais como: as canções Pedro Pedreiro (1965), Construção
(1971), Rosa dos ventos e Apesar de você (1970) – esta última
se tornaria símbolo de protesto de toda essa época; e as peças teatrais Roda-Viva
(1968) e Calabar, O
elogio da traição (1973).
Ø Chico Buarque aparece
como um dos principais críticos da ditadura, consequentemente, um dos artistas
mais visados pela censura. Esta condição o levaria a criar pseudônimo (Julinho
da Adelaide) e a exilar-se na Itália em 1969.
·
Efeitos de memória presentes na obra, como o sentido dos
enunciados são determinados pela condição sócio–histórica em que é produzido e não somente pela
associação à sua estrutura. Observa-se, também, em que medida sujeitos e
discursos são constituídos no texto literário e estabelece um paralelo entre o
episódio histórico (cuja discursivização posta pela história social
promoveu Calabar à personificação da traição) e o período histórico em que se
deu a produção da obra, para daí realizar uma leitura possível dos sentidos de “traição”.
Nove noites
Bernardo Carvalho
Nove Noites, sexto livro de Bernardo Carvalho, narra uma investigação sobre a misteriosa
morte de um antropólogo americano, Buell Quain, que aos 27 anos, em 1939, se
suicida após uma estada em uma aldeia indígena situada no Tocantins, no Brasil,
quando subitamente regressava à civilização. No meio da floresta, Quain,
sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios
horrorizados que o acompanhavam na volta para a cidade da Carolina.
Este é o ponto de partida da narrativa de Bernardo
Carvalho: um caso trágico, senão mórbido, perdido nos anos e na memória.
Bernardo decidiu, a partir de tão poucas informações, tecer um romance
utilizando a história fatídica de Buell Quain como base, entrelaçando história e ficção, texto
jornalístico e um estranho narrador que entrecorta todo o livro.
O narrador /
confessor do antropólogo responde pela parte ficcional de Nove Noites,
ao passo que o próprio Bernardo Carvalho encarna e responde pelo lado
jornalístico, do
levantamento de dados que indiquem os reais motivos que levaram Buell Quain a
dar cabo de sua existência. Não se sabe quem investiga, até porque ninguém
nunca lhe perguntou a razão da sua curiosidade. Há a desculpa de querer
escrever um livro, que vai adiantando para não levantar suspeitas. A mistura
que o autor tenta levar a termo é extremamente interessante como recurso
literário: insere fotos e personagens da década de 1930 na história, como
pessoas reais ou imaginárias, o leitor nunca sabe exatamente onde está pisando.
Pela sua mão somos guiados por entrevistas com pessoas que privaram com Quain,
arquivos públicos, e memórias deixadas em cartas, escritas pelo suicida antes
de morrer, e por um seu amigo, com quem partilhou nove noites de conversas e
revelações.
São vários mistérios que se interligam, e adensam a
narrativa, em que o leitor partilha a claustrofobia e evasão de identidade das
personagens. Da
mesma forma, Bernardo Carvalho abre um campo de especulação na mente do leitor,
não somente sobre os motivos que ocasionaram a morte de Buell Quain, mas
principalmente sobre o significado e as conseqüências da transferência de um
jovem norte-americano para o interior das florestas brasileiras. O autor junta
habilmente a realidade e a ficção, o romance e a investigação que desenvolveu
sobre os índios e sobre o antropólogo. Como nos diz o próprio autor nos
agradecimentos é uma combinação de memória e imaginação, - como todo o
romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.
Em outras palavras, Nove Noites é um
excelente exemplo do nem sempre salutar choque cultural.
Nove Noites desconstrói as estratégias da narrativa realista e
propõe um jogo com o real, jogo no qual, além de desconstruir as estratégias da
narrativa realista, este romance desafia os modos nos quais a cultura de massas
"consome" realidade.
A história de Quain é verdadeira. O autor soube
dela por um artigo no "Jornal de Resenhas", da "Folha de S.
Paulo", escrito pela antropóloga Mariza Corrêa, em que o caso era citado
de passagem.
A história do escritor, ao menos em parte, também
procede: na orelha do livro há uma foto de Carvalho, aos seis anos, ao lado de
um índio do Xingu, região onde seu pai de fato fora proprietário de terras. O
resto permanece em suspense - e nem o próprio autor parece disposto a separar
fato de ficção.
Enredo
O antropólogo americano Buell Quain suicidou-se em 1939, aos 27 anos, poucos
dias após deixar uma aldeia indígena no interior do Brasil. No fim dos anos 60,
um menino de seis anos de idade, contrariado, freqüenta a região do Xingu, onde
o pai comprou uma fazenda. Mais de 30 anos depois, o menino se transformou num
escritor empenhado em reconstruir a trajetória de Quain e, por conseqüência,
passagens da própria infância.
Em Nove Noites, o personagem histórico
"biografado" – o Bell Quain - e o narrador "biógrafo" não
se relacionam alegoricamente, mas sim metonimicamente. A obsessão pelo suicídio
do antropólogo no Xingu revela um trauma do próprio narrador, que teria
convivido na infância com os índios: a representação do inferno (...) fica
no Xingu da minha infância (p. 60). Na busca de dados sobre Quain, o
narrador volta ao Xingu para ouvir o que os índios lembram do Quain. Mas não
consegue nenhuma informação, e em troca é ele quem lembra da infância, quando
acompanhava o pai nas viagens pelas suas fazendas de Mato Grosso e Goiás.
Alegórica ou metonimicamente, a subjetividade do
autor-narrador se coloca no texto através de um mergulho numa outra
subjetividade com a qual o narrador estabelece um jogo. E em ambos os casos o
que relaciona essas duas subjetividades é um trauma: o trauma dos intelectuais
na ditadura, num caso, e o trauma da morte no outro.
Na obra de Bernardo Carvalho a figura do mártir
está ausente, e o romance se desvia assim de uma trilha traçada por toda uma
tradição de romances que mostraram o índio como vítima: Quarup, Maíra,
entre outros. Pelo contrário, em Nove Noites os índios exercem uma certa
"violência" (psicológica) sobre os brancos, digamos que o encontro do
branco com o índio constitui, no romance um trauma.
No livro uma experiência traumática se configura
como uma máquina de tempo, que relaciona momentos da história nacional. Assim,
a história do suicídio de Bell Quain acaba mexendo com o trauma do próprio
narrador. Quando ele está no hospital acompanhando o pai no seu leito de morte,
testemunha a última hora de um velho desconhecido, que ocupa a cama do lado, e
que está morrendo em solidão. O velho, no seu delírio, chama o narrador de
"Bill Cohen", confundindo-o com um amigo de juventude. Muitos anos
depois, o nome de "Buell Quain", mencionado num jornal, traz no
narrador a reminiscência daquele outro nome que ouvira pronunciado pelo velho.
Mas não é o mesmo nome, o narrador o deixa bem claro: de repente me lembrei
de onde o tinha ouvido antes e, fazendo a devida correção ortográfica na minha
cabeça, descobri de quem falava o velho americano no hospital (p. 147)
(...)em momento nenhum deixei de desconfiar da possibilidade, ainda que
pequena, de uma confusão ou de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido
errado, os meses que precederam a morte do meu pai foram especialmente tensos,
e eu não andava com a cabeça no lugar (p.153). Ou seja, a leitura do nome
do antropólogo no jornal se torna disparador da experiência traumática,
entendendo por ela a resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou
arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas que
retornam mais tarde em flash- backs, pesadelos e outros fenômenos repetitivos.
A morte do pai, que ocorrera estando ele ausente,
apenas é relatada: era o dia da minha partida. Minha vida seguiu o seu rumo.
Meu pai morreu três meses depois. Fiquei três anos fora. Até a própria
sintaxe - seca, mínima - desloca a importância do fato da morte do pai. No
entanto, se o narrador chega – na imaginação do velho - como substituto de
Quain; em troca o velho oferece a possibilidade de testemunhar sua morte, em
substituto da morte do pai, que ocorrera quando ele já tinha partido. Essa
troca de papéis (a morte do velho substituindo a do pai, a chegada do narrador
substituindo a do velho amigo Quain) funciona como um deslocamento, que pode
explicar por que o mistério da morte de Quain provoca uma obsessão, uma vez que
ele remete à cena misteriosa de primeira vez que o narrador vira um homem
morrer e, é claro, ao mistério da morte silenciosa do pai. O narrador e sua
irmã têm disputado a herança do pai com a última mulher dele, que é quem acaba
ficando com tudo: o pai só deixa aos filhos seu silencio como herança. Como
disse o testamento de Manoel Perna, único amigo de Quain no Brasil: o
segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança
que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que
seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade (p.
7).
Esse mistério (da morte de Quain e, segundo a nossa
hipótese, também da morte do próprio pai) provoca uma obsessão no narrador, mas
não pode senão ficar como mistério, buraco negro da narrativa. Assim, o
testamento de Manoel Perna, o amigo que passara "nove noites" com
Quain, que é um documento chave da pesquisa, no entanto, é escrito – inventado
- pelo próprio narrador (segundo ele próprio confessa, quase no final do
romance, desestabilizando completamente o estatuto de verdade dos fatos
narrados). Ou seja, a "prova" principal, o fio narrativo da historia
de Quain, é declarada falsa "na cara" do leitor. E, apesar da
decepção, o interesse se mantém, e até aumenta depois dessa revelação, pois o
que interessa é mais a própria pesquisa do que alguma suposta verdade sobre
Quain: interessa a relação do narrador com essa história e aonde ela o
conduzirá.
A pesquisa sobre a morte de Quain vai construindo
uma trama pseudo-policial no romance, mas se revela menos como caminho à
verdade do que como elaboração do trauma, pois é o trauma da infância que
aproxima afetivamente ao narrador com Quain: Buell Quain também havia
acompanhado o pai em viagens de negócios (...) Mas se para Quain, que saía do
Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo associado a uma espécie de
paraíso (...) para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de mais
nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno. (p.64)
Quando retorna junto aos índios, como exigência da sua pesquisa, esse encontro
é descrito como infernal. Lacan considera que o real se apresenta sob a forma
do inassimilável do trauma; ele aporta a noção de "tyché" como uma
forma de nomear o real como encontro falido. Ao se tratar de um trauma (ou
seja, aquilo que não pode ser narrado, nem representado), é evidente por que cada
um dos documentos que o narrador encontra ao mesmo tempo que revelam, encobrem.
As cartas que documentam aspectos da história teriam sido duvidosamente
traduzidas, sobre elas se constrói o testamento, que sabemos falso. O narrador
vai em busca do filho do velho que morrera no hospital, achando que esse velho
poderia ter sido o fotografo amigo de Quain, mas quando o encontra, acha que
seus traços se parecem não aos do velho mas aos de Quain. Quer dizer, a escrita
se torna totalmente paranóica (e isto é típico dos romances de Carvalho), ao
ponto que nada mais parece confiável. A "realidade" da ficção se
desmancha. As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve
(p. 8), diz o narrador. Mas as armadilhas do texto, que transita entre o documentário
e o ficcional, entre o subjetivo e o histórico, e mistura tudo, não oferecem ao
leitor nenhuma possibilidade de confiar.
Em Nove noites o passado não deixa de
retornar (na estrutura em abismo, na qual um tempo contém o passado e o
futuro), retornam os rostos, as lembranças, as experiências.
Trecho do livro (páginas 114 a 117)
Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina
sem sapatos. Queria passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou de
outra ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado
antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os nativos
do Pacífico, já fazia quatro anos, do outro lado do mundo. Agora, já não falava
da mesma.
Não era a ilha em que adormecera sob as estrelas,
embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do crepúsculo à aurora, ao
longo de semanas ininterruptas. Me lembro de vê-lo rindo pela primeira vez da
própria história, quando chegou a Carolina, quando me falou da ilha no
Pacífico, ainda na primeira noite em que bebemos juntos, fazia mais de dois
meses, comentando as cutucadas que o nativo lhe dava em vão, para mantê-lo
acordado, e de como fiquei sem graça quando ele de repente parou de rir para
assumir uma expressão grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante
da inutilidade das tentativas de mantê-lo desperto, terminava por se deitar ao
seu lado também.
Fiquei constrangido com a idéia de que pudesse
pensar que eu estava cansado de suas histórias e de que, sem perceber, ele
insinuasse alguma coisa ao me contar aquela.
Quando o etnólogo acordava na sua ilha do Pacífico,
o sol já estava alto e o contador de histórias tinha ido embora. Quando voltou
a Carolina no final de maio, me mostrou orgulhoso a foto e o desenho que fizera
de próprio punho, retratos de negros enormes e fortes, para que eu pudesse ter
um a idéia do que me dizia. Eu não podia ter imaginado que a aldeia não ficava
na praia, mas morro acima, até ele me falar da Floresta Interior, governada por
um chefe que mantinha um dente de baleia pendurado no peito como símbolo de
poder.
Na ilha, os chefes eram sagrados, assim como tudo
que eles tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas pelos invasores de
outras ilhas, que por sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os nativos
do interior mantinham intacto aquilo que ele procurava: uma sociedade em que, a
despeito da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis
dentro de uma estrutura fixa e de um repertório predeterminado.
Havia um leque de opções, embora restrito, e uma
mobilidade interna. Foi o que ele me disse. sempre teve fascínio pelas ilhas.
São universos isolados. Arrumou o primeiro emprego com apenas quinze anos e foi
trabalhar, durante as férias de 1928, como " controlador do tempo e das
horas" – foi nesses termos canhestros que ele tentou me explicar, com o
auxílio de gestos, a sua tarefa no canteiro de obras de uma estrada de ferro
numa região inexplorada no coração do Canadá, com a poesia involuntária dos que
não conhecem a língua em que tentam se exprimir.
Aproveitava os dias de folga para explorar as ilhas
da região, rascunhando mapas que mandava para casa no lugar de cartas e que
mostravam a sua posição no mundo. Avançava por rochedos e florestas de abetos,
horas a fio a desbravar regiões desérticas em sua fantasia de pioneiro
solitário, a embrenhar-se na natureza até não restar outra fronteira para sua
liberdade além dos limites do próprio corpo, até nada além do corpo impedir a
fusão com a paisagem em que já se dissolvera em espírito.
Eram territórios que trilhava sozinho no verão
ártico, infestado de mosquitos, e cujos mapas eram uma indissociável combinação
da sua experiência e da sua imaginação. Assim como o que tento lhe reproduzir
agora, e você terá que perdoar a precariedade das imagens de um humilde
sertanejo que não conhecendo o mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar
a sua própria imaginação do que ouviu. Mas não foi de nenhuma dessas ilhas que
ele me falou quando voltou a Carolina descalço e humilhado no final de maio. Foi
de uma outra, à qual se chegava de balsa, depois de duas horas de trem, vindo
da cidade. Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos,
todos ocupados por amigos. Já não se expressava com tristeza nem com alegria. E
eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela lembrança.
Contou de uma tarde em que, voltando de uma
caminhada solitária pela praia, onde abandonara os colegas, deparou com a casa
excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes de poder se
apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma máquina fotográfica e
registrou para sempre o espanto e o desconforto do antropólogo recém-chegado de
um passeio na praia, surpreendido pelo desconhecido. Numa das noites em que
veio à minha casa durante a sua passagem por Carolina, no final de maio, o dr.
Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem
revelada naquele retrato.
Como um desafio e uma aposta que fizera consigo
mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmera. Não podia admitir que
aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do
desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo, antes de poder dizer
qualquer coisa. E embora depois tenham se tornado amigos, por muito tempo o
estranho não conseguiria tirar outra foto dele. Até irromper um dia em seu
apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de qualquer jeito, depois de
ter sabido que ele estava de partida para o Brasil.
Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar
para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse estranho era você.
A
hora e a vez de Augusto Matraga
João Guimarães Rosa
Escrita em 1937, a obra "Sagarana"
foi submetida a um concurso literário (Prêmio Graça Aranha, da Editora José
Olympio) em que ficou em segundo lugar. O autor usou o pseudônimo de Viator,
que, em latim, significa "viandante". A obra trazia quinhentas
páginas. Com o tempo, foi reduzida para cerca de trezentas e publicada em 1946.
O
título é um hibridismo (união de dois radicais de línguas distintas):
"saga", de origem germânica, significa "canto heróico"; e
"rana", de origem indígena, quer dizer "à maneira de" ou
"espécie de".
As estórias desembocam sempre numa
alegoria, e o desenrolar dos fatos prende-se a um sentido ou "moral",
à maneira das fábulas. As
epígrafes, que encabeçam cada conto, condensam sugestivamente a narrativa e são
tomadas da tradição mineira, dos provérbios e cantigas do sertão.
A obra começa com uma epígrafe,
extraída de uma quadra de desafio, que sintetiza os elementos centrais da obra
- Minas Gerais, sertão, bois, vaqueiros e jagunços, o bem e o mal:
Narrado em terceira
pessoa, o conto enfatiza duas constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo, na
interminável luta do bem e do mal.
Augusto Esteves,
filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido
como Nhô Augusto e também como Augusto Matraga, é o maior valentão do lugar,
briga com todo mundo e maltrata por pura perversidade. Debochado, tira as
mulheres e namoradas dos outros. Não se preocupa com sua mulher, Dona Dionóra,
nem com sua filha, Mimita, nem com sua fazenda, que começa a se arruinar.
Já em descrédito
econômico e político, sobrevém o castigo: sua mulher, Dionóra, foge com Ovídio
Moura levando a filha, e seus bate-paus (capangas), mal pagos, põem-se a
serviço do seu pior inimigo; o Major Consilva Quim Recadeiro foi quem levou a
notícia da defecção dos capangas. Nhô Augusto resolve ter com eles, antes de
matar Dionóra e Ovídio, mas no caminho é atacado, numa tocaia, por seus
inimigos, que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa. Quase
inconsciente, no momento em que vai ser assassinado, reúne as últimas forças e
se atira no despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por morto. É,
contudo, encontrado por um casal de negros velhos: a mãe Quitéria e o pai
Serapião, que tratam de Nhô Augusto, que sara, mas fica com sequelas
deformantes.
Começa então uma nova
vida, no povoado do Tombador, para onde levou os pretos, seus protetores.
Regenera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de trabalho duro,
penitência e reza. Arrependido de suas maldades, ajuda a todos, e reza com
devoção: quer ir para o céu, "nem que seja a porrete", e sonha com um
"Deus valentão".
Passados seis anos,
tem notícias de sua ex-família através de Tião da Thereza: a esposa, Dona
Dionóra, vive feliz com Ovídio, e vai casar-se com ele; Mimita, sua filha, foi
enganada por um cometa (espécie de caixeiro viajante) e caiu na perdição.
Matraga sente saudades, sofre, mas se resigna.
Certo dia, aparece o
Joãozinho Bem-Bem, jagunço de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino
Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho e Epifânio. Matraga
hospeda-os com grande dedicação e admira as armas e o bando de Joãozinho
Bem-Bem. Mas se recusa a acompanhar o bando, mesmo convidado pelo chefe e não
aceita qualquer ajuda dos jagunços. Quer mesmo ir para o céu.
Totalmente
recuperado, Matraga despede-se dos velhinhos e parte, sem destino, num jumento.
Chega ao Arraial do Rala-Coco, onde reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu bando,
prestes a executar uma cruel vingança contra a família de um assassino que
fugira. Augusto Matraga desperta para a sua hora e vez: intervém em nome da
justiça, opõe-se ao chefe do bando, liquida diversos capangas, tomado de
verdadeiro furor. Bate-se em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem. Ambos morrem
- Joãozinho primeiro. Nessa hora, Augusto Matraga é identificado por seu
antigos conhecidos.
Observe a importância
do número três durante toda a narrativa: a personagem principal tem três nomes
- Augusto Matraga, Augusto Esteves e Nhô Augusto; os lugares em que transcorrem
as fases de sua vida também são três - Murici, onde vive inicialmente; o
Tombador, onde faz penitência; o Rala-Coco, lugarejo próximo a Murici, onde
encontra sua hora e vez. Além disso, ele também vive em trios: inicialmente, na
praça, ele está com duas prostitutas; em casa, ele vive com a mulher e a filha;
depois de ter sido surrado e marcado a ferro, vive com um casal de pretos; e,
no final, aparece um último trio: ele, Joãozinho Bem-Bem e o velho a quem
protege.
Noite
Erico Verissimo
A novela “Noite”
relata uma trama de mistério, onde o autor apresenta de maneira detalhada,
enriquecido com momentos, lembranças, perturbações psíquicas. Apresentando
algumas articulações sobre a condição humana de ser no mundo com os outros e o
desamparo constitutivo.
Ao iniciar a leitura,
percebe-se um distúrbio
psíquico de uma das personagens, o homem de gris (assim o autor se refere à
personagem), quando se vê perdido no anoitecer de verão, na principal rua de
sua própria cidade. Cambaleando pela rua sente alguém lhe puxando o braço com
violência e gritando se desejava morrer atropelado. Não respondeu ao homem que
lhe puxara, somente olhou para o céu e pronunciou o nome de uma mulher que
vinha repetindo mentalmente. Tenta se lembrar desesperadamente. “Quem sou? Onde
estou? Que aconteceu?”. Preso a uma amnésia a personagem caminha pela rua.
“Num gesto maquinal
tirou do bolso o lenço e passou-o pelo rosto. Que perfume era aquele?” É um
cheiro de perfume de mulher, mas quem será esta mulher? O desconhecido (assim
também é citado na novela) não reconhece as próprias roupas e fica a refletir
consigo mesmo. Onde teria encontrado-as? Em guarda-roupa ou de um alheio? E a
carteira recheada de dinheiro, é sua? Será que ele é um ladrão? A personagem se
vê cheio de perguntas que ele nem os transeuntes conseguiam responder.
O que está
acontecendo com ele? Um pesadelo, porém ao pensar nisso lhe vem uma terrível
dor de cabeça, que o traz para a realidade, e o deixa ainda pior com medo,
aflição e tenebrosa sensação de estar sendo seguido. Saí andado
desesperadamente até encontrar um café-restaurante onde entra sem mesmo saber
motivo. Sem saber o que pedir pede água mineral ao garçom.
Neste instante alguém
se aproxima, era um homúnculo corcunda de baixa estatura e de braços
desproporcionalmente longos, mais se parecia com um chimpanzé do que com ser
humano. O homúnculo se apresentou dizendo ser um artista. Pintou-o em um papel
que cobrou uma fortuna. Aqui começa a estranha amizade desses dois personagens.
Ao perceber que o
Desconhecido tem uma carteira repleta de dinheiro, o Corcunda passou a
interessar-se pelo estranho e lhe promete uma grande noite, mesmo sem o
Desconhecido dizer-lhe uma palavra. Para essa grande noite Corcunda chama para
acompanhá-los um amigo a quem lhe chama de Mestre, que é um homem de muita
inteligência e grande influência entre a alta sociedade, porém, não passa de
mais um interessado no dinheiro do Desconhecido. Nesse trecho percebe-se a
amizade por interesse.
Logo mais, podemos
ler o momento que os dois interrogam o estranho sobre a sua identidade, mas ele
somente diz não se lembrar de nada. Como não acreditam na hipótese de perda de
memória acham que ele é um criminoso que matou alguém e roubou aquelas roupas e
dinheiro. Surgindo assim, a desconfiança.
Apesar de tudo, a
noite começa, sobre o comando do Mestre. Passam por ruas de prostitutas, animam
um velório numa rua suburbana, por uma quermesse de uma igreja, até chegarem ao
local do compromisso do Mestre, que nada mais é do que um prostíbulo muito
discreto para pessoas da alta sociedade onde ele teria indicado para um
comendador. Depois disso passam por pelo Pronto Socorro, onde confirmam que
houve uma morte de uma mulher por esfaqueamento. Será o Desconhecido culpado
pela notícia desse crime recente? Terá ele algum vínculo?
Em meio a tudo isso o
Desconhecido continua a acompanhá-los mesmo sem dizer nada, e o Corcunda,
sempre a pedir descaradamente dinheiro ao estranho que o dava sem perguntar o
porque.
Após isso seguem a um cabaré onde conhecem a Ruiva e Passarinho, duas
prostitutas. Corcunda se interessa pela Passarinho, e o Desconhecido fica com a
Ruiva. Depois de muita bebida, o estranho desmaia, ao acordar o cabaré está
vazio. Eles saem e se encaminham para a casa das garotas. Ao chegarem a Ruiva
arrasta o Desconhecido para seu quarto, este fica sem ação, mas depois de algum
tempo indeciso ele faz mantém relação sexual com ela, com o vago pressentimento
de que ela é uma pessoa conhecida.
O grande momento da novela é quando o Desconhecido acorda e se levanta
no outro dia e não se lembra o que aconteceu no dia anterior, mas está recuperado
de seu lapso de memória, relembra o dia anterior em que chegou em casa e não
encontrou a mulher. Rapidamente sai daquele domicílio e se dirige para a sua
casa. Na rua as pessoas já estão se levantando para se dirigem aos seus
serviços.
No caminho se recorda
de sua infância, um
tanto conturbada com a morte prematura de sua mãe, depois o seu casamento e a
noite de lua de mel onde ele fica impotente e só consegue consumar os laços
matrimonias com sua mulher depois de um longo tempo ao lado dela. Noites como
essa se repetiram por várias vezes. Com isso ele começa a desconfiar que sua
esposa o trai, então ele a trata violentamente e lhe diz palavras terríveis.
Ao chegar na porta de
sua casa ele teme entrar, pois sabe que ela não voltou. Pois, como poderia voltar
depois de ter sido tão humilhada? Quando ele finalmente entra na casa e ouve
que alguém caminha no andar de cima uma alegria o toma, sobe as escadas
velozmente. Será que ela voltou?
A novela “Noite” nos deixa uma grande dúvida neste final. Será que a esposa
dele morreu e ele está ouvindo passos? Será que ele a matou e não quer assumir
para si mesmo ou ela fugiu e ele não quer aceitar a realidade?
O romance nos leva a pensar que o Desconhecido
inconscientemente utiliza a perda da memória como fuga. Refúgio para algo que
ele possa ter feito, mas prefere não se lembrar. Como, por exemplo, assassinado
a esposa, ou não aceitar a perda da esposa pela hipótese de que fora traído.
Esta novela nos deixa
várias questões. Tais como, amizades por interesse, a descrença pelo que
se desconhece, fuga para não aceitar a realidade. Mas uma coisa pode-se ter
certeza, que o autor nos mostra, os fracassados são aqueles que não
conseguem assumir seus próprios atos, levando os outros a tirarem conclusões
precipitadas.