quarta-feira, 2 de julho de 2014

Anos 60

ANOS 60
CONFLITOS E DESENREDOS

Se o clima dos anos 60 foi de revolução em todos os quadrantes do mundo e dimensões da vida, devemos incluir aí a tremenda explosão de qualidade no campo da ficção curta brasileira. São desta década algumas das realizações máximas no gênero em nosso país. Contos de Clarice Lispector e Rubem Fonseca, por exemplo, legam modelos narrativos que vão influenciar todas as gerações seguintes de escritores. Os contos dos anos 60 falam de nossa contemporaneidade, quase sempre urbana, agitada por conflitos psicológicos e sociais. Desenredam-se laços, tradições. Homens e mulheres se dilaceram em conflitos de identidade. Não há mais lugar para a inocência, o lirismo puro. Ficamos mais adultos. Os leitores inclusive. Querem mais narrativas que traduzam com força dramática e riqueza metafórica as cruezas do real. A literatura brasileira nunca mais será a mesma depois do vendaval dos 60.



A força humana
Rubem Fonseca

Eu queria seguir em frente mas não podia. Ficava parado no meio daquele monte de crioulos - uns balançando o pé, ou a cabeça, outros mexendo os braços; mas alguns, como eu, duros como um pau, fingindo que não estavam ali, disfarçando que olhavam um disco na vitrina, envergonhados. É engraçado, um sujeito como eu sentir vergonha de ficar ouvindo música na porta da loja de discos. Se tocam alto é pras pessoas ouvirem; e se não gostassem da gente ficar ali ouvindo era só desligar e pronto: todo mundo desguiava logo. Além disso, só tocam música legal, daquelas que você tem que ficar ouvindo e que faz mulher boa andar diferente, como cavalo do exército na frente da banda.
A questão é que passei a ir lá todos os dias. As vezes eu estava na janela da academia do João, no intervalo de um exercício, e lá de cima via o montinho na porta da loja e não agüentava - me vestia correndo, enquanto o João perguntava, "aonde é que você vai, rapaz? você ainda não terminou o agachamento", e ia direto para lá. O João ficava maluco com esse troço, pois tinha cismado que ia me preparar para o concurso do melhor físico do ano e queria que eu malhasse quatro horas por dia e eu parava no meio e ia para a calçada ouvir música. "Você está maluco", dizia, "assim não é possível, eu acabo me enchendo com você, está pensando que eu sou palhaço?"
Ele tinha razão, fui pensando nesse dia, reparte comigo a comida que recebe de casa, me dá vitaminas que a mulher que é enfermeira arranja, aumentou meu ordenado de auxiliar de instrutor de alunos só para que eu não vendesse mais sangue e pudesse me dedicar aos exercícios, puxa!, quanta coisa, e eu não reconhecia e ainda mentia para ele; podia dizer para ele não me dar mais dinheiro, dizer a verdade, que a Leninha dava para mim tudo que eu queria, que eu podia até comer em restaurante, se quisesse, era só dizer para ela: quero mais.
            De longe vi logo que tinha mais gente que de costume na porta da loja. Gente diferente da que ia lá; algumas mulheres. Tocava um samba de balanço infernal - rum schtictum tum: os dois alto-falantes grandes na porta estavam de lascar, enchiam a praça de música. Então eu vi, no asfalto, sem dar a menor bola para os carros que passavam perto, esse crioulo dançando.Pensei: outro maluco, pois a cidade está cada vez mais cheia de maluco, de maluco e de viado. Mas ninguém ria. O crioulo estava de sapato marrom todo cambaio, uma calça mal-ajambrada, rota no rabo, camisa branca de manga comprida suja e suava pra burro. Mas ninguém ria. Ele fazia piruetas, misturava passo de balé com samba de gafieira, mas ninguém ria. Ninguém ria porque o cara dançava o fino e parecia que dançava num palco, ou num filme, um ritmo danado, eu nunca tinha visto um negócio daqueles. Nem eu nem ninguém, pois os outros também olhavam para ele embasbacados. Pensei: isso é coisa de maluco mas maluco não dança desse jeito, para dançar desse jeito o sujeito tem que ter boas pernas e bom molejo, mas é preciso também ter boa cabeça. Ele dançou três músicas do long-play que estava tocando e quando parou todo mundo começou a falar um com o outro, coisa que nunca acontece na porta da loja, pois as pessoas ficam lá ouvindo música caladas. Então o crioulo apanhou uma cuia que estava no chão perto da árvore e a turma foi colocando notas na cuia que ficou logo cheia. Ah, estava explicado, pensei, o Rio estava ficando diferente. Antigamente você via um ou outro ceguinho tocando um troço qualquer, às vezes acordeão, outras violão, tinha até um que tocava pandeiro acompanhado de rádio de pilha - mas dançarino era a primeira vez que eu via. Já vi também uma orquestra de três paus-de-arara castigando cocos e baiões e o garoto tocando o "Tico-tico no fubá" nas garrafas cheias d'água. Já vi. Mas dançarino! Botei duzentas pratas na cuia. Ele colocou a cuia cheia de dinheiro perto da árvore, no chão, tranqüilo e seguro de que ninguém ia mexer na gaita, e voltou a dançar.
Era alto: no meio da dança, sem parar de dançar, arregaçou as mangas da camisa, um gesto até bonito, parecia bossa ensaiada, mas acho que ele estava era com calor, e apareceram dois braços muito musculosos que a camisa larga escondia. Esse cara é definição pura, pensei. E isso não foi palpite, pois basta olhar para qualquer sujeito vestido que chega na academia pela primeira vez para dizer que tipo de peitoral tem ou qual o abdômen, se a musculatura dá para inchar ou para definir. Nunca erro.
Começou a tocar uma música chata, dessas de cantor de voz fina e o crioulo parou de dançar, voltou para a calçada, tirou um lenço imundo do bolso e limpou o suor do rosto. O grosso debandou, só ficaram mesmo os que sempre ficam para ouvir música, com ou sem show. Cheguei perto do crioulo e disse que ele tinha dançado o fino. Riu. Conversa vai conversa vem ele explicou que nunca tinha feito aquilo antes. "Quer dizer, fiz uma outra vez. Um dia passei aqui e me deu uma coisa, quando vi estava dançando no asfalto. Dancei uma música só, mas um cara embolou uma notinha e jogou no meu pé. Era um Cabral. Hoje vim de cuja. Sabe como é, estou duro que nem, que nem -" "Poste", disse eu. Ele olhou para mim, da maneira que tinha de olhar sem a gente saber o que ele estava pensando. Será que pensava
que eu estava gozando ele? Tem poste branco também, ou não tem?, pensei. Deixei passar. Perguntei, "você faz ginástica?". "Que ginástica, meu chapa?" "Você tem o físico de quem faz ginástica." Deu uma risada mostrando uns dentes branquíssimos e fortes e sua cara que era bonita ficou feroz como a de um gorila grande. Sujeito estranho. "Você faz?", perguntou ele. "O quê?" "Ginástica", e me olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que eu sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?, eu não preciso de ninguém, deixa o cara pensar, na hora de pegar para capar é que eu quero ver. "Faço peso", disse. "Peso?" "Halterofilismo." "Ah, ah!", riu de novo, um gorila perfeito. Me lembrei do Humberto de quem diziam que tinha a força de dois gorilas e quase a mesma inteligência. Qual seria a força do crioulo? "Como é o seu nome?", perguntei, dizendo antes o meu. "Vaterlu, se escreve com dábliu e dois ós." "Olha, Waterloo, você quer ir até a academia onde eu faço ginástica?" Ele olhou um pouco para o chão, depois pegou a cuia e disse vamos". Não perguntou nada, fomos andando, enquanto ele punha o dinheiro no bolso, todo embolado, sem olhar para as notas.
Quando chegamos na academia, João estava debaixo da barra com o Corcundinha. "João, esse éo Waterloo", eu disse. João me olhou atravessado, dizendo "quero falar contigo", e foi andando para o vestiário. Fui atrás. "Assim não é possível, assim não é possível", disse o João. Pela cara dele vi que estava piçudo comigo. "Você parece que não entende", continuou João, "tudo que eu estou fazendo é para o teu bem, se fizer o que eu digo papa esse campeonato com uma perna nas costas e depois está feito. Como é que você ensa que eu cheguei ao ponto em que eu cheguei? Foi sendo o melhor físico do ano. Mas tive que fazer força, não foi parando a série no meio não, foi malhando de manhã e de tarde, dando duro, mas hoje tenho academia, tenho automóvel, tenho duzentos alunos, tenho o meu nome feito, estou comprando apartamento. E agora eu quero te ajudar e você não ajuda. É de amargar. O que eu ganho com isso? Um aluno da minha academia ganhar o campeonato? Tenho o Humberto, não tenho? O Gomalina, não tenho? O Fausto, o Donzela - mas escolho você entre todos esses e essa é a paga que você me dá." "Você tem razão", disse enquanto tirava a roupa e colocava minha sunga. Ele continuou: "Se você tivesse a força de vontade do Corcundinha! Cinqüenta e três anos de idade! Quando chegou aqui, há seis meses, você sabe disso, estava com uma doença horrível que comia os músculos das costas dele e deixava a espinha sem apoio, o corpo cada vez caindo mais para os lados, chegava a dar medo. Disse para mim que estava ficando cada vez menor e mais torto, que os médicos não sabiam porra nenhuma, nem injeções nem massagens estavam dando jeito nele: teve nego aqui que ficou de boca aberta
olhando para  seu peito pontudo feito chapéu de almirante, a corcunda saliente, todo torcido para a frente, para o lado, fazendo caretas, dava até vontade de vomitar só de olhar. Falei pro Corcundinha, te ponho bom, mas tem que fazer tudo que eu mandar, tudo, tudo, não vou fazer um Steve Reeves de você, mas daqui a seis meses será outro homem. Olha ele agora. Fiz um milagre? Ele fez o milagre, castigando, sofrendo, penando, suando: não há limite para a força humana!".
Deixei o João gritar essa história toda pra ver se sua chateação comigo passava. Disse, pra deixar ele de bom humor, "teu peitoral está bárbaro". João abriu os dois braços e fez os peitorais saltarem, duas massas enormes, cada peito devia pesar dez quilos: mas ele não era o mesmo das fotografias espalhadas pela parede. Ainda de braços abertos, João caminhou para o espelho grande da parede e ficou olhando lateralmente seu corpo. "É esse supino que eu quero que você faça; em três fases: sentado, deitado de cabeça para baixo na prancha e deitado no banco; no banco eu faço de três maneiras, vem ver." Deitou-se no banco com a cara sob o peso apoiado no cavalete. "Assim, fechado, as mãos quase juntas; depois, uma abertura média; e, finalmente, as mãos bem abertas nos extremos da barra. Viu como é? Já botei na tua ficha nova. Você vai ver o teu peitoral dentro de um mês", e dizendo isso me deu um soco forte no peito.
"Quem é esse crioulo?", perguntou João olhando Waterloo, que sentado num banco
batucava calmamente. "Esse é o Waterloo", respondi, trouxe para fazer uns exercícios, mas ele não pode pagar." "E você acha que eu vou dar aula de graça para qualquer vagabundo que aparece por aqui?" "Ele tem base, João, a modelagem deve ser uma sopa." João fez uma careta de desprezo: "O que, o quê?, esse cara!, ah! manda embora, manda embora, você tá maluco". "Mas você ainda não viu, João. A roupa dele não ajuda." "Você viu?" "Vi", menti, "vou arranjar uma sunga para ele."
Dei a sunga para o crioulo, dizendo: "Veste isso, lá dentro".
Eu ainda não tinha visto o crioulo sem roupa, mas fazia fé: a postura dele só seria possível com uma musculatura firme. Mas fiquei preocupado; e se ele só tivesse esqueleto? O esqueleto é importante, é a base de tudo, mas tirar um esqueleto do zero é duro como o diabo, exige tempo, comida, proteína e o João não ia querer trabalhar em cima de osso.
Waterloo de sunga saiu do vestiário. Veio andando normalmente: ainda não conhecia os truques dos veteranos, não sabia que mesmo numa aparente posição de repouso é possível retesar toda a musculatura, mas isso é um troço difícil de fazer, como por exemplo definir a asa e os tríceps ao mesmo tempo, e ainda sim ultaneamente os costureiros e os reto-abdominais, e os bíceps e o trapézio, e tudo harmoniosamente sem parecer que o cara está tendo um ataque epiléptico. Ele não sabia fazer isso, nem podia, é coisa de mestre, mas no entanto, vou dizer, aquele crioulo tinha o desenvolvimento muscular cru mais perfeito que já vi na minha vida. Atéo Corcundinha parou seu exercício e veio ver. Sob a pele fina de um negro profundo e brilhante, diferente do preto fosco de certos crioulos, seus músculos se distribuíam e se ligavam, dos
pés à cabeça, num crochê perfeito.
"Te dependura aqui na barra", disse o João. "Aqui?", perguntou Waterloo, já debaixo da barra. "É. Quando a tua testa chegar na altura da barra, pára." Waterloo começou a suspender o corpo, mas no meio do caminho riu e pulou para o chão. "Não quero palhaçada aqui não, isso é coisa séria", disse João, "vamos novamente." Waterloo subiu e parou como o João tinha mandado. João ficou olhando. "Agora, lentamente, leva o queixo acima da barra. Lentamente. Agora desce, lentamente. Agora volta à posição inicial e pára." João examinou o corpo de Waterloo. "Agora, sem mexer o tronco, levanta as duas pernas, retas e juntas." E o crioulo começou a levantar as pernas, devagar, e com facilidade, e a musculatura do seu corpo parecia uma orquestra afinada, os músculos funcionando em conjunto, uma coisa bonita e poderosa. João devia estar impressionado, pois começou também a contrair os próprios músculos e então notei que eu e o próprio Corcundinha fazíamos o mesmo, como a cantar em coro uma música irresistível; e João disse, com voz amiga que não usava para aluno nenhum,
"pode descer", e o crioulo desceu e João continuou, "você já fez ginástica?" e Waterloo respondeu negativamente e João arrematou "é não fez mesmo não, eu sei que não fez; olha, vou contar para vocês, isso acontece uma vez em cem milhões; que cem milhões, um bilhão! Que idade você tem?". "Vinte anos", disse Waterloo. "Posso fazer você famoso, você quer ficar famoso?", perguntou João. "Pra quê?", perguntou Waterloo, realmente interessado em saber para quê. "Pra quê? Pra quê? Você é gozado, que pergunta mais besta", disse João. Para que, eu fiquei pensando, é mesmo, para quê? Para os outros verem a gente na rua e dizerem lá vai o famoso fulaneco? "Para que, João?", perguntei. João me olhou como se eu tivesse xingado a mãe dele. "Ué, você também, que coisa! O que vocês têm na cabeça, hein? Ahn?" O João de vez em quando perdia a paciência. Acho que estava com uma vontade doida de ver um aluno ganhar o campeonato. "O senhor não explicou pra que", disse Waterloo respeitosamente. "Então explico. Em primeiro lugar, para não andar esfarrapado como um mendigo, e tomar banho quando quiser, e comer - peru, morango, você já comeu morango? -, e ter um lugar confortável para morar, e ter mulher, não uma nega fedorenta, uma loura, muitas mulheres andando atrás de você, brigando para ter você, entendeu? Vocês nem sabem o que é isso, vocês são uns bundas-sujas mesmo." Waterloo olhou para João, mais surpreso que qualquer outra coisa, mas eu fiquei com raiva; me deu vontade de sair na mão com ele ali mesmo, não por causa do que havia dito de mim, eu quero que ele se foda, mas por estar sacaneando o crioulo; cheguei até a imaginar como seria a briga: ele é mais forte, mas eu sou mais ágil, eu ia ter que brigar em pé, na base da cutelada. Olhei para o seu pescoço grosso: tinha que ser ali no gogó, um pau seguro no gogó, mas para dar um cacete caprichado ali por dentro ia ter que me colocar meio lateral e a minha base não ficava tão firme se ele viesse com um passa-pé;
e por dentro o bloqueio ia ser fácil, o João tinha reflexo, me lembrei dele treinando o Mauro para aquele vale-tudo com o Juarez em que o Mauro foi estraçalhado; reflexo ele tinha, estava gordo mas era um tigre; bater dos lados não adiantava, ali eram duas chapas de aço; eu podia ir para o chão tentar uma finalização limpa, uma chave de braço; duvidoso. "Vamos botar a roupa, vamos embora", disse para Waterloo. "O que que há?", perguntou João apreensivo, você está zangado comigo?" Bufei e disse: "Sei lá, estou com o saco cheio disso tudo, quase me embucetei contigo ainda agora, é bom você ficar sabendo". João ficou tão nervoso que quase perdeu a pose, sua barriga chegou a estufar como se fosse uma fronha de travesseiro, mas não era medo da briga não, disso ele não tinha medo, ele estava era com medo de perder
o campeonato. "Você ia fazer isso com o teu amigo", cantou ele, "você é como um irmão para mim, e ia brigar comigo?" Então fingiu uma cara muito compungida, o artista, e sentou abatido num banco com o ar miserável de um sujeito que acaba de ter notícia que a mulher o anda corneando. "Acaba com isso, João, não adianta nada. Se você fosse homem, você pedia desculpa." Ele engoliu em seco e disse "tá bem, desculpa, porra!, desculpa, você também (para o crioulo), desculpa; está bem assim?". Tinha dado o máximo, se eu provocasse ele explodia, esquecia o campeonato, apelava para a ignorância, mas eu não ia fazer isso, não só porque a minha raiva já tinha passado depois que briguei com ele em pensamento, mas também porque João havia pedido desculpa e quando homem pede desculpa a gente desculpa. Apertei a mão
dele, solenemente; ele apertou a mão de Waterloo. Também apertei a mão do crioulo. Ficamos sérios como três doutores.
"Vou fazer uma série para você, tá?", disse João, e Waterloo respondeu "sim senhor". Eu peguei a minha ficha e disse para João: "Vou fazer a rosca direta com sessenta quilos e a inversa com quarenta, o que você acha?". João sorriu satisfeito, "ótimo, ótimo”.
Terminei minha série e fiquei olhando João ensinar ao Waterloo. No princípio a coisa é muito chata, mas o crioulo fazia os movimentos com prazer, e isso é raro: normalmente a gente demora a gostar do exercício. Não havia mistério para Waterloo, ele fazia tudo exatamente como João queria. Não sabia respirar direito, é verdade, o miolo da caixa ainda ia ter que abrir, mas, bolas, o homem estava começando!
Enquanto Waterloo tomava banho, João disse para mim: "Estou com vontade de preparar ele também para o campeonato, o que você acha?". Eu disse que achava uma boa idéia. João continuou: "Com vocês dois em forma, é difícil a academia não ganhar. O crioulo só precisa inchar um pouco, definição ele já tem". Eu disse: "Também não é assim não, João; o Waterloo é bom, mas vai precisar malhar muito, ele só deve ter uns quarenta de braço". "Tem quarenta e dois ou quarenta e três", disse João. "Não sei, é melhor medir." João disse que ia medir o braço, antebraço, peito, coxa, barriga da perna, pescoço. "E você quanto tem de braço?", me perguntou astuto; ele sabia, mas eu disse, "quarenta e seis". "Hum... é pouco, hein?, pro campeonato é pouco... faltam seis meses... e você, e você..." "Que que tem eu?" "Você está afrouxando..." A conversa estava chata e resolvi prometer, para encerrar: "Pode deixar, João, você vai ver, nesses seis meses eu vou pra cabeça". João me deu um abraço, "você é um cara inteligente... Puxa! com a pinta que você tem, sendo campeão!, já imaginou? Retrato no jornal... Você vai acabar no cinema, na América, na Itália, fazendo aqueles filmes coloridos, já imaginou?". João colocou várias anilhas de dez quilos no pulley. "Teu pulley é de
quanto?", perguntou. "Oitenta." "E essa garota que você tem, como é que vai ser?" Falei seco: "Como é que vai ser o quê?". Ele: "Sou teu amigo, lembre-se disso". Eu: "Está certo, você é meu amigo, e daí?". "Tudo que eu falo é para o teu bem." "Tudo que você fala é para o meu bem, e daí?" "Sou como um irmão para você." "Você é como um irmão para mim, e daí?" João
agarrou a barra do pulley, ajoelhou-se e puxou a barra até o peito enquanto os oitenta quilos de anilhas subiam lentamente, oito vezes. Depois: "Qual é o teu peso?". "Noventa." "Então faz o pulley com noventa. Mas olha, voltando ao assunto, sei que peso dá um tesão grande, tesão, fome, vontade de dormir - mas isso não quer dizer que a gente faça isso sem medida; a gente fica estourado, na ponta dos cascos, mas tem que se controlar, precisa disciplina; vê o Nelson, a comida acabou com ele, fazia uma série de cavalo pra compensar, criou massa, isso criou, mas comia como um porco e acabou com um corpo de porco... coitado..." E João fez uma cara de pena. Não gosto de comer, e João sabe disso. Notei que o Corcundinha, deitado de costas,
fazendo um crucifixo quebrado, prestava atenção na nossa conversa. "Acho que você anda fuçando demais", disse João, "isso não é bom. Você chega aqui toda manhã marcado de chupão, arranhado no pescoço, no peito, nas costas, nas pernas. Isso nem fica bem, temos uma porção de garotos aqui na academia, é um mau exemplo. Por isso eu vou te dar um conselho"- e João olhou para mim com cara de amigos-amigos-negócios-à-parte, com cara de
contar dinheiro; já se respaldava no crioulo? - "essa garota não serve, arranja uma que queira uma vez só por semana, ou duas, e assim mesmo maneirando." Nesse instante Waterloo surgiu do vestiário e João disse para ele, "vamos sair que eu vou comprar umas roupas para você; mas é empréstimo, você vai trabalhar aqui na academia e depois me paga". Para mim: "Você precisa de um ajudante. Güenta a mão aí, que eu já volto".
Sentei-me, pensando. Daqui a pouco começam a chegar os alunos. Leninha, Leninha. Antes que fizesse uma luz, o Corcundinha falou: "Quer ver se eu estou puxando certo na barra?". Fui ver. Não gosto de olhar o Corcundinha. Ele tem mais de seis tiques diferentes. "Você está melhorando dos tiques", eu disse; mas que besteira, ele não estava, por que eu disse aquilo? "Estou, não estou?", disse ele satisfeito, piscando várias vezes com incrível rapidez o olho esquerdo. "Qual a puxada que você está fazendo?" "Por trás, pela frente, e de mãos juntas na ponta da barra. Três séries para cada exercício, com dez repetições. Noventa puxadas, no total, e não sinto nada." "Devagar e sempre", eu disse para ele. "Ouvi a tua conversa com o João", disse o Corcundinha. Balancei a cabeça. "Esse negócio de mulher é fogo", continuou ele, "eu briguei com a Elza." Raios, quem era a Elza? Por via das dúvidas, disse "é". Corcundinha: "Não era mulher para mim. Mas ocorre que estou agora com essa outra pequena e a Elza vive ligando lá para casa dizendo desaforos para ela, fazendo escândalos. Outro dia na saída do cinema foi de morte. Isso me prejudica, eu sou um homem de responsabilidade". Corcundinha num ágil salto agarrou a barra com as duas mãos e balançou o corpo para a frente e para trás, sorrindo, e dizendo: "Essa garota que tenho agora
é um estouro, um brotinho, trinta anos mais nova do que eu, trinta anos, mas eu ainda estou em forma - ela não precisa de outro homem". Com puxadas rápidas Corcundinha içou o corpo várias vezes. Por trás, pela frente, rapidamente: uma dança; horrível; mas não despreguei olho. "Trinta anos mais nova?", eu disse maravilhado. Corcundinha gritou do alto da barra: "Trinta anos! Trinta anos!". E dizendo isso Corcundinha deu uma oitava na barra, uma subida de rim e após balançar-se pendularmente tentou girar como se fosse uma hélice, seu corpo completamente vermelho do esforço, com exceção da cabeça, que ficou mais branca. Segurei suas pernas; ele caiu pesadamente, em pé, no chão. "Estou em forma", ofegou. Eu disse: "Corcundinha, você precisa tomar cuidado, você... você não é criança". Ele: "Eu me cuido, me cuido, não me troco por nenhum garoto, estou melhor do que quando tinha vinte anos e bastava uma mulher roçar em mim para eu ficar maluco; é toda noite, meu camaradinha, toda noite!". Os músculos do seu rosto, pálpebra, narina, lábio, testa começaram a contrair, vibrar, tremer, pulsar, estremecer, convulsar; os seis tiques ao mesmo tempo. "De vez em quando os tiques voltam?", perguntei. Corcundinha respondeu: "É só quando fico distraído". Fui para a janela pensando que a gente vive distraído. Embaixo, na rua, estava o montinho de gente em frente à loja e me deu vontade de correr para lá, mas eu não podia deixar a academia sem ninguém.
Depois chegaram os alunos. Primeiro chegou um que queria ficar forte porque tinha espinhas no rosto e voz fina, depois chegou outro que queria ficar forte para bater nos outros, mas esse não ia bater em ninguém, pois um dia foi chamado para uma decisão e medrou; e chegaram os que gostam de olhar no espelho o tempo todo e usar camisa de manga curta apertada pro braço parecer mais forte; e chegaram os garotos de calças Lee, cujo objetivo
é desfilar na praia; e chegaram os que só vêm no verão, perto do carnaval, e fazem uma série violenta para inchar rápido e eles vestirem suas fantasias de sarong, grego, qualquer coisa que ponha a musculatura à mostra; e chegaram os coroas cujo objetivo é queimar a banha da barriga, o que é muito difícil, e, depois de certo ponto, impossível; e chegaram os lutadores profissionais:  Príncipe Valente, com sua barba, Testa de Ferro, Capitão Estrela, e a turma do vale-tudo: Mauro, Orlando, Samuel - estes não dão bola pra modelagem, só querem força para ganhar melhor sua vida no ringue: não se aglomeram na frente dos espelhos, não chateiam pedindo instruções; gosto deles, gosto de treinar com eles nas vésperas de uma luta, quando a academia está vazia; e vê-los sair de uma montada, escapar de um arm-lock ou então bater quando consigo um estrangulamento perfeito; ou ainda conversar sobre as lutas que ganharam ou perderam.
O João voltou, e com ele Waterloo de roupa nova. João encarregou o crioulo de arrumar as anilhas, colocar barras e alteres nos lugares certos, até você aprender para ensinar".
Já era de noite quando Leninha telefonou para mim, perguntando a que horas eu ia para casa, para casa dela, e eu disse que não podia passar lá pois ia para a minha casa. Ouvindo isso Leninha ficou calada: nos últimos trinta ou quarenta dias eu ia toda noite para a casa dela, onde já tinha chinelo, escova de dentes, pijama e uma porção de roupas; ela perguntou se eu estava doente e eu disse que não; e ela ficou outra vez calada, e eu também, parecia até que nós queríamos ver quem piscava primeiro; foi ela: "Então você não quer me ver hoje?". "Não é nada disso", eu disse, "até amanhã, telefona para mim amanhã, tá bem?"
Fui para o meu quarto, o quarto que eu alugava de dona Maria, a velha portuguesa que tinha catarata no olho e queria me tratar como se fosse um filho. Subi as escadas na ponta dos pés, segurando o corrimão de leve e abri a porta sem fazer barulho. Deitei imediatamente na cama, depois de tirar os sapatos. No seu quarto a velha ouvia novelas: "Não, não, Rodolfo, eu te imploro!", ouvi do meu quarto, "Juras que me perdoas? Perdoar-te, como, se te amo mais que a mim mesmo... Em que pensas? Oh! não me perguntes... Anda, responde... às vezes não sei se és mulher ou esfinge...". Acordei com batidas na porta e dona Maria dizendo "já lhe disse que ele não está", e Leninha: "A senhora me desculpe, mas ele disse que vinha para casa e eu
tenho um assunto urgente". Fiquei quieto: não queria ver ninguém. Não queria ver ninguém - nunca mais. Nunca mais. "Mas ele não está." Silêncio. Deviam estar as duas frente a frente. Dona Maria tentando ver Leninha na fraca luz amarela da sala e a catarata atrapalhando, e Leninha... (é bom ficar dentro do quarto todo escuro). "... sar mais tarde?" "Ele não tem vindo, há mais de um mês que não dorme em casa, mas paga religiosamente, é um bom menino.
Leninha foi embora e a velha estava de novo no quarto: "Permiti-me contrariá-lo, perdoe-me a ousadia... mas há um amor que uma vez ferido só encontra sossego no esquecimento da morte... Ana Lúcia! Sim, sim, um amor irredutível que paira muito além de todo e qualquer sentimento, amor que por si resume a delícia do céu dentro do coração...". Coitada da velha que vibrava com aquelas baboseiras. Coitada? Minha cabeça pesava no travesseiro, uma pedra em cima do meu peito... um menino? Como é que era ser menino? Nem isso sei, só me lembro que urinava com força, pra cima: ia alto. E também me lembro dos primeiros filmes que vi, de Carolina, mas aí eu já era grande, doze?, treze?, já era homem. Um homem. Homem...
De manhã quando ia para o banheiro dona Maria me viu. "Tu dormiste aqui?", ela me perguntou. "Dormi." "Veio uma moça te procurar, estava muito inquieta, disse que era urgente." "Sei quem é, vou falar com ela hoje", e entrei no banheiro. Quando saí, dona Maria me perguntou, "não vais fazer a barba?". Voltei e fiz a barba. "Agora sim, estás com cara de limpeza", disse dona Maria, que não se desgrudava de mim. Tomei café, ovo quente, pão com manteiga, banana. Dona Maria cuidava de mim. Depois fui para a academia.
Quando cheguei já encontrei Waterloo. "Como é? Está gostando?", perguntei. "Por enquanto está bom." "Você dormiu aqui?" "Dormi. O seu João disse para eu dormir aqui." E não dissemos mais nada, até a chegada do João.
João foi logo dando instruções a Waterloo: "De manhã, braço e perna, de tarde, peito, costas e abdominal"; e foi vigiar o exercício do crioulo. Para mim não deu bola. Fiquei espiando. "De vez em quando você bebe suco de frutas", dizia João, segurando um copo, "assim, ó", João encheu a boca de líquido, bochechou e engoliu devagar, "viu como é?", e deu o copo para Waterloo, que repetiu o que ele tinha feito.
A manhã toda João ficou paparicando o crioulo. Fiquei ensinando os alunos que chegaram. Arrumei os pesos que espalhavam pela sala. Waterloo só fez a série. Quando chegou o almoço - seis marmitas - João me disse: "Olha, não leve a mal, vou repartir a comida com o Waterloo, ele precisa mais do que você, não tem onde almoçar, está duro, e a comida só dá para dois". Em seguida sentaram-se colocando as marmitas sobre a mesa de massagens forrada de jornais e começaram a comer. Com as marmitas vinham sempre dois pratos e talheres.
Me vesti e saí para comer, mas estava sem fome e comi dois pastéis num botequim. Quando voltei, João e Waterloo estavam esticados nas cadeiras de lona. João contando a história do duro que tinha dado para ser campeão.
Um aluno me perguntou como é que fazia o pullover reto e fui mostrar para ele, outro ficou falando comigo sobre o jogo do Vasco e o tempo foi passando e chegou a hora da série da tarde - quatro horas - e Waterloo parou perto do leg-press e perguntou como funcionava e João deitou-se e mostrou dizendo que o crioulo ia fazer agachamento que era melhor. "Mas agora vamos pro supino", disse ele, "de tarde, peito, costas e abdômen, não se esqueça.
Às seis horas mais ou menos o crioulo acabou a série dele. Eu não tinha feito nada. Até aquela hora João não tinha falado comigo. Mas aí disse: "Vou preparar o Waterloo, aluno igual a ele nunca vi, é o melhor que já tive , e me olhou, rápido e disfarçado; não quis saber onde queria chegar; saber, sabia, eu manjo os truques dele, mas não me interessei. João continuou: "Já viu coisa igual? Não acha que ele pode ser o campeão?". Eu disse: "Talvez; ele tem quase tudo, só falta um pouco de força e de massa". O crioulo, que estava ouvindo, perguntou: "Massa"? Eu disse: "Aumentar um pouco o braço, a perna, o ombro, o peito - o resto está-", ia dizer ótimo mas disse "bom". O crioulo: "E força?". Eu: "Força é força, um negócio que tem dentro da gente". Ele: "Como é que você sabe que eu não tenho?". Eu ia dizer que era palpite, e palpite é palpite, mas ele me olhava de uma maneira que não gostei e por isso: "Você não tem". "Acho que ele tem", disse João, dentro do seu esquema. "Mas o garotão não acredita em mim", disse o crioulo.
Para que levar as coisas adiante?, pensei. Mas João perguntou: "Ele tem mais ou menos força do que você?".
"Menos", eu disse. "Isso só vendo", disse o crioulo. O João era o seu João, eu era o garotão: o crioulo tinha que ser meu faixa, pelo direito, mas não era. Assim é a vida. "Como é que você quer ver?", perguntei, azedo. "Tenho uma sugestão", disse João, "que tal uma queda de braço?" "Qualquer coisa , eu disse. "Qualquer coisa", repetiu o crioulo.
João riscou uma linha horizontal na mesa. Colocamos os antebraços em cima da linha de modo que meu dedo médio estendido tocasse o cotovelo de Waterloo, pois meu braço era mais curto. João disse: "Eu e o Gomalina seremos os juÍzes; a mão que não é da pegada pode ficar espalmada ou agarrada na mesa; os pulsos não poderão ser curvados em forma de gancho antes de iniciada a disputa". Ajustamos os cotovelos. Bem no centro da mesa nossas mãos se agarraram, os dedos cobrindo somente as falanges dos polegares do adversário, e envolvendo as costas das mãos, Waterloo indo mais longe pois seus dedos eram mais extensos e tocavam na aba do meu cutelo. João examinou a posição dos nossos braços. "Quando eu disser já vocês podem começar." Gomalina se ajoelhou de um lado da mesa, João do outro. "Já", disse João.
A gente pode iniciar uma queda de braço de duas maneiras: no ataque, mandando brasa logo, botando toda força no braço imediatamente, ou então ficando na retranca, agüentando a investida do outro e esperando o momento certo para virar. Escolhi a segunda. Waterloo deu um arranco tão forte que quase me liquidou; puta merda! Eu não esperava aquilo; meu braço cedeu até a metade do caminho, que burrice a minha, agora quem tinha que fazer força, que se gastar, era eu. Puxei lá do fundo, o máximo que era possível sem fazer careta, sem morder os dentes, sem mostrar que estava dando tudo, sem criar moral no adversário. Fui puxando, puxando, olhando o rosto de Waterloo. Ele foi cedendo, cedendo, até que voltamos ao ponto de partida, e nossos braços se imobilizaram. Nossas respirações já estavam fundas, sentia o vento que saía do meu nariz bater no meu braço. Não posso esquecer a respiração, pensei, essa parada vai ser ganha pelo que respirar melhor. Nossos braços não se moviam um milímetro. Lembrei-me de um filme que vi, em que os dois camaradas, dois campeões, ficam um longo tempo sem levar vantagem um do outro, e enquanto isso um deles, o que ia ganhar, o mocinho, tomava whisky e tirava baforadas de um charuto. Mas ali não era cinema não; era uma luta de morte, vi que o meu braço e o meu ombro começavam a ficar vermelhos; um suor fino fazia o tórax de Waterloo brilhar; sua cara começou a se torcer e senti que ele vinha todo e o meu braço cedeu um pouco, e mais, raios!, mais ainda, e ao ver que podia perder isso me deu um desespero, e uma raiva! Trinquei os dentes! O crioulo respirava pela boca, sem ritmo, mas me levando, e então cometeu o grande erro: sua cara de gorila se abriu num sorriso e pior ainda, com a provocação grasnou uma gargalhada rouca de vitorioso, jogou fora aquele tostão de força que faltava para me ganhar. Um relâmpago cortou minha cabeça dizendo: agora!, e a arrancada que dei ninguém segurava, ele tentou mas a potência era muita; seu rosto ficou cinza, seu coração ficou na ponta da língua, seu braço amoleceu, sua vontade acabou - e de maldade, ao ver que entregava o jogo, bati com seu punho na mesa duas vezes. Ele ficou agarrando minha mão, como uma longa despedida sem palavras, seu braço vencido sem forças, escusante, caído como um cachorro morto na estrada.
Livrei minha mão. João, Gomalina queriam discutir o que tinha acontecido mas eu não os ouvia - aquilo estava terminado. João tentou mostrar o seu esquema, me chamou num canto. Não fui. Agora Leninha. Me vesti sem tomar banho, fui embora sem dizer palavra, seguindo o que meu corpo mandava, sem adeus: ninguém precisava de mim, eu não precisava de ninguém. É isso, é isso.
Eu tinha a chave do apartamento de Leninha. Deitei no sofá da sala, não quis ficar no quarto, a colcha cor-de-rosa, os espelhos, o abajur, a penteadeira cheia de vidrinhos, a boneca sobre a cama estavam me fazendo mal. A boneca sobre a cama: Leninha a penteava todos os dias, mudava sua roupa - calcinha, anágua, sutiã - e falava com ela, "minha filhinha linda, ficou com saudades da mamiquinha?". Dormi no sofá.
Leninha com um beijo no rosto me acordou. "Você veio cedo, não foi na academia hoje?" "Fui", disse sem abrir os olhos. "E ontem? Você foi cedo para a sua casa?" "Fui", agora de olho aberto: Leninha mordia os lábios. "Não brinca comigo não, querido, por favor..." "Fui, não estou brincando." Ela suspirava. "Sei que você foi lá em casa. A hora não sei; ouvi você falar com dona Maria, ela não sabia que eu estava no quarto." "Fazer uma sujeira dessas comigo!", disse Leninha, aliviada. "Não foi sujeira nenhuma", eu disse. "Não se faz uma coisa dessas com... com os amigos." "Não tenho amigos, podia ter, até príncipe, se quisesse." "O quê?", disse ela dando uma gargalhada, surpresa. "Não sou nenhum vagabundo, conheço príncipe, conde, fique sabendo." Ela riu: "Príncipe?!, príncipe! No Brasil não tem príncipe, só tem príncipe na Inglaterra, você está pensando que sou boba". Eu disse: "Você é burra, ignorante; e não tem príncipe na Itália? Esse príncipe era italiano". "E você já foi na Itália?" Eu devia ter dito que já tinha comido uma condessa, que tinha andado com um príncipe italiano e, bolas, quando você anda com uma dona com quem outro cara também andou, isso não é uma forma de conhecer ele? Mas Leninha também não ia acreditar nessa história da condessa, que acabou tendo um fim triste como todas as histórias verdadeiras: mas isso não conto para ninguém. Fiquei de repente calado e sentindo a coisa que me dá de vez em quando, nas ocasiões em que os dias ficam compridos e isso começa de manhã quando acordo sentindo uma aporrinhação enorme e penso que depois de tomar banho passa, depois de tomar café passa, depois de fazer ginástica passa, depois do dia passar passa, mas não passa e chega a
noite e estou na mesma, sem querer mulher ou cinema, e no dia seguinte também não acabou. Já fiquei uma semana assim, deixei crescer a barba e olhava as pessoas, não como se olha um automóvel, mas perguntando, quem é?, quem é?, quem-é-além-do-nome?, e as pessoas passando na minha frente, gente pra burro neste mundo, quem é?
Leninha, me vendo assim apagado como se fosse uma velha fotografia, sacudiu um pano na minha frente dizendo, "olha a camisa bacana que comprei para você; veste, veste para eu ver". Vesti a camisa e ela disse: "Você está lindo, vamos na boate?". "Fazer o que na boate?" "Quero me divertir, meu bem, trabalhei tanto o dia inteiro." Ela trabalha de dia, só anda com homem casado e a maioria dos homens casados só faz essa coisa de dia. Chega cedo na casa da dona Cristina e às nove horas da manhã já tem freguês telefonando para ela. O movimento maior é na hora do almoço e no fim da tarde; Leninha não almoça nunca, não tem tempo.
Então fomos à boate. Acho que ela gosta de me mostrar, pois insistiu comigo para levar a camisa nova, escolheu a calça, o sapato e até quis pentear o meu cabelo, mas isso também era demais e não deixei. Ela é gozada, não se incomoda que as outras mulheres olhem para mim. Mas só olhar. Se alguma dona vier falar comigo fica uma fera.
O lugar era escuro, cheio de infelizes. Mal tínhamos acabado de sentar um sujeito passou pela nossa mesa e disse: "Como vai, Tânia?". Leninha respondeu: "Bem obrigada, como vai o senhor?". Ele também ia bem obrigado. Me olhou, fez um movimento com a cabeça como se estivesse me cumprimentando e foi para a mesa dele. "Tânia?", perguntei. "Meu nome
de guerra", respondeu Leninha. "Mas o teu nome de guerra não é Betty?", perguntei. "É, mas ele me conheceu na casa da dona Viviane, e lá o meu nome de guerra era Tânia."
Nesse instante o cara voltou. Um coroa, meio careca, bem vestido, enxuto para a idade dele. Tirou Leninha para dançar. Eu disse: "Ela não vai dançar não, meu chapa". Ele talvez tenha ficado vermelho, no escuro, disse: "Eu pensei...". Não dei mais pelota pro idiota, ele estava ali, em pé, mas não existia. Disse para Leninha: "Esses caras vivem pensando, o mundo está cheio de pensadores". O sujeito sumiu.
"Que coisa horrível isso que você fez", disse Leninha, "ele é meu cliente antigo, advogado, um homem distinto, e você fazer uma coisa dessas com ele. Você foi muito grosseiro." "Grosseiro foi ele, não viu que você estava acompanhada, por - um amigo, freguês, namorado, irmão, fosse o que fosse? Devia ter-lhe dado um pontapé na bunda. E que história é essa de Tânia, dona Viviane?" "Isso é uma casa antiga que freqüentei." "Casa antiga? Que casa antiga?" "Foi logo que me perdi, meu bem... no princípio... É de amargar.
"Vamos embora", eu disse. "Agora?" "Agora."
Leninha saiu chateada, mas sem coragem de demonstrar. "Vamos pegar um táxi", ela disse. "Por quê?", perguntei, "não sou rico para andar de táxi." Esperei que ela dissesse "o dinheiro é meu", mas ela não disse; insisti: "Você é boa demais para andar de ônibus, não é?"; ela continuou calada; não desisti: "Você é uma mulher fina"; - "de classe; - "de categoria". Então ela falou, calma, a voz certa, como se nada houvesse: "Vamos de ônibus".
Fomos de ônibus para a casa dela.
"O que que você quer ouvir?", perguntou Leninha. "Nada", respondi.Fiquei nu, enquanto Leninha ia ao banheiro. Com os pés na beira da cama e as mãos no chão fiz cinqüenta mergulhos. Leninha voltou nua do banheiro. Ficamos os dois nus, parados dentro do quarto, como se fôssemos estátuas.
No princípio, esse princípio era bom: nós ficávamos nus e fingíamos, sabendo que fingíamos, que estávamos à vontade. Ela fazia pequenas coisas, arrumava a cama, prendia os cabelos mostrando em todos os ângulos o corpo firme e saudável - os pés e os seios, a bunda e os joelhos, o ventre e o pescoço. Eu fazia uns mergulhos, depois um pouco de tensão de Charles Atlas, como quem não quer nada, mas mostrando o animal perfeito que eu também era, e sentindo, o que ela devia também sentir, um prazer enorme por saber que estava sendo observado com desejo, até que ela olhava sem rebuços para o lugar certo e dizia com uma voz funda e arrepiada, como se estivesse sentindo o medo de quem vai se atirar num abismo, "meu bem", e então a representação terminava e partíamos um para o outro como duas crianças aprendendo a andar, e nos fundíamos e fazíamos loucuras, e não sabíamos de que garganta os gritos saíam, e implorávamos um ao outro que parasse mas não parávamos, e redobrávamos a nossa fúria, como se quiséssemos morrer naquele momento de força, e subíamos e explodíamos, girando em rodas roxas e amarelas de fogo que saíam dos nossos olhos e dos nossos ventres e dos nossos músculos e dos nossos líquidos e dos nossos espíritos e da nossa dor pulverizada. Depois a paz: ouvíamos alternadamente o bater forte dos
nossos corações sem sobressalto; eu botava o meu ouvido no seu seio e em seguida ela, por entre os lábios exaustos, ela soprava de leve o meu peito, aplacando; e sobre nós descia um vazio que era como se a gente tivesse perdido a memória.
Mas naquele dia ficamos parados como se fôssemos duas estátuas. Então me envolvi no primeiro pano que encontrei, e ela fez o mesmo e sentou-se na cama e disse "eu sabia que ia acontecer", e foi isso, e portanto ela, que eu considerava uma idiota, que me fez entender o que tinha acontecido. Vi então que as mulheres têm dentro delas uma coisa que as faz entender o que não é dito. "Meu bem, o que que eu fiz?", ela perguntou, e eu fiquei com uma pena danada dela; com tanta pena que deitei ao seu lado, arranquei a roupa que a envolvia, beijei seus seios, me excitei pensando em antigamente, e comecei a amá-la, como um operário no seu ofício, e inventei gemidos, e apertei-a com força calculada. Seu rosto começou a ficar úmido, primeiro em torno dos olhos, depois a face toda. Ela disse: "O que que vai ser de você
sem mim?", e com a voz saíram também os soluços.
Botei minha roupa, enquanto ela ficava na cama, com um braço sobre os olhos. "Que horas são?", ela perguntou. Eu disse: "Três e quinze". "Três e quinze... quero marcar a última hora que estou te vendo...", disse Leninha. E não adiantava eu dizer nada e por isso saí, fechando a porta da rua cuidadosamente.
Fiquei andando pelas ruas vazias e quando o dia raiou eu estava na porta da loja de discos louco que ela abrisse. Primeiro chegou um cara que abriu a porta de aço, depois outro que lavou a calçada e outros, que arrumaram a loja, puseram os alto-falantes para fora, até que afinal o primeiro disco foi colocado e com a música eles começaram a surgir de suas covas, e se postaram ali comigo, mais quietos do que numa igreja. Exato: como numa igreja, e
me deu uma vontade de rezar, e de ter amigos, o pai vivo, e um automóvel. E fui rezando lá por dentro e imaginando coisas, se tivesse pai ia beijar ele no rosto, e na mão tomando bênção, e seria seu amigo e seríamos ambos pessoas diferentes.


Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

O moço do saxofone
Lygia Fagundes Telles

Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone.

Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando?

— É o moço do saxofone.

Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.

— E o quarto dele fica aqui em cima?

James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.

— Aqui em cima.

Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo.

— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.

— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.

— Deitou com você?

— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...

Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.

— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?

James encolheu o ombro.

— Chifre dói.

Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.

—- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone.

— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.

— E os outros não reclamam?

— A gente já se acostumou.

Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu.

— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas...

Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.

— Licença?

Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.

— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.

— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?

Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar.

— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga.

— O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender!

Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.

— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?

James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.

— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!

Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem.

— Não topo isso, pomba.

— Isso o quê?

Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.

— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.

— Feito agora.

Pela cara vi que era mentira.

— Não é preciso, tomo na esquina.

A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.

— Sim senhor!

— Sim senhor o quê? — perguntou James.

— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.

James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.

— Mulher é o diabo...

Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.

— Ora, não precisava se incomodar...

Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.

— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?

— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.

Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.

— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar.

O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.

— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.

Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.

— Está servido?

— Obrigado, não posso fumar.

Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.

— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?

— Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos.

Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.


Feliz Aniversário
Clarice Lispector

A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata.

Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.

Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.

E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.

Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito "Happy Birthday!", em outros "Feliz Aniversário!" No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa.

E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.

De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo.

Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.

Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa.

Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.

— Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.

Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.

— Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.

A velha não se manifestava.

Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.

— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.

A velha não se manifestava.

Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.

— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!

— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.

— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!

Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.

E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês.

Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira.

Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor - e acendeu a lâmpada.

— Viva mamãe!

— Viva vovó!

— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.

— Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.

Bateram ainda algumas palmas ralas.

A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação , como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.

— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.

— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.

Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.

E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?

E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria.

— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.

— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara.

— Hoje é dia da mãe! disse José.

Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.

— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança.

— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.

Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.

Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.

— Me dá um copo de vinho! disse.

O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.

— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.

— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! — ordenou.

Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis.

Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.

Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.

Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.

E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.

— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.

A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.

— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas.

Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.

Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.

Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada.

— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.

— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.

— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.

Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o, lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heróico, risonho.

E de repente veio a frase:

— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido.

Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.

— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.

Então ela abriu a boca e disse:

— Pois é.

Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:

— No ano que vem nos veremos, mamãe!

— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.

Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.

As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.

Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.

— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: "Pelo menos noventa anos", pensou melancólica a nora de Ipanema. "Para completar uma data bonita", pensou sonhadora.

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.

O vampiro de Curitiba

Dalton Trevisan

Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo – beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada.– ai, querida, é uma folha seca ao vento – e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro – não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita – e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés.
Por Deus do céu não lhe faço mal – nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.
Olhos velados que suplica e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou – oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?
Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto – o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama – acho que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e arminho – rasgando com os dentes, deixa-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e rechonchudo – se não quer por que mostra em vez de esconder: –, Com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco – ó mãe do céu! – desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico – conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova – à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara feia, está perdido.Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta – como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela, quando menino era a bandinha do Tiro rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila – onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta, abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas instrumento do prazer – de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar – nem uma baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca?
Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida – ó curvas, ó delícias – concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro – os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo – beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte quatro horas e desmaia feliz.


Uma Galinha
Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

A caçada
Lygia Fagundes Telles
A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.

— Bonita imagem — disse ele.

A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.

— É um São Francisco.


Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.

— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.

O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.

— Parece que hoje está mais nítida...

— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como?

— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?

A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.

— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?

— Notei uma diferença.

— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.

— Extraordinário...

A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.

— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.

O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...

Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.

O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.

— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente?

A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.

— Não vejo diferença nenhuma.

— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...

— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?

— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.

— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.

O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.

Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?"

Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...

Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.".

Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.

Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.

Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!

Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:

— Hoje o senhor madrugou.

— A senhora deve estar estranhando, mas...

— Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho...

"Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.

Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!

"Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

Uma Vela para Dario
Dalton Trevisan
Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.


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