ANOS 70
VIOLÊNCIA E PAIXÃO
Os
anos 70 marcam um momento de apogeu do conto no Brasil, depois do salto de
qualidade na década anterior. Intensificam-se ímpetos revolucionários e
dilaceramentos pessoais, agora num contexto de violência política e social até
então inédito no país. O conto afirma-se como instrumento adequado para
expressar artisticamente o ritmo nervoso e convulsivo desta década passional.
Entra na moda um novo e carinhoso retrato de escritor, o "contista
mineiro", descendente legítimo das gerações de Carlos Drummond, Fernando
Sabino e Otto Lara Resende. Diante do consumismo e da internacionalização em que
mergulha a classe média, a arte do conto busca trazer à tona o outro lado, o
lado violento e obscuro da realidade. O contista brasileiro dos anos
70 quer desafinar o coro dos contentes.
Passeio
Noturno – Parte I
Rubem
Fonseca
Cheguei em casa carregando a pasta
cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha
mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira,
disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da
casa: minha filha no quarto dela, treinando impostação de voz, a música
quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou
minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a
relaxar.
Fui para a biblioteca, o lugar da
casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de
pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você
não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e
ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso
mandar servir o jantar?.
A copeira servia à francesa, meus
filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho
que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro
quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor.
Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.
Vamos dar uma volta de carro?,
convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você
acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma
fortuna, tem que ser usado, eu que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha
mulher respondeu.
Os carros dos meninos bloqueavam a
porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois,
botei na rua, tirei o meu, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei
a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os
pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado,
senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um
motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô
aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua
deserta, nesta cidade que tem muito mais gente do que moscas. Na Avenida
Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada,
cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia
grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso,
isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher,
podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil.
Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas
de padaria ou de quitanda, estava lá de saia e blusa, andava depressa, havia
árvores na calçada de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir
uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só
percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus
batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas
pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do
impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei
como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de
volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove
segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido
parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de
subúrbio.
Examinei o carro na garagem. Corri
orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca.
Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas
máquinas.
A família estava vendo televisão. Deu
sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando
fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter
um dia terrível na companhia.
Passeio
Noturno – Parte II
Rubem
Fonseca
Eu ia para casa quando um carro encostou no meu,
buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para
entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela:
Não está mais conhecendo os outros?
Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri
polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A Avenida Atlântica, às
sete horas da noite, é muito movimentada.
A mulher,
movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse,
olha um presentinho para você.
Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha
mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.
Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver
o que estava escrito. Ângela, 287-3594.
À noite, saí
como sempre faço.
No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu.
Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que
devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista,
respondeu a mulher.
Liguei mais
tarde. Ângela atendeu.
Sou aquele
cara do Jaguar preto, eu disse.
Você sabe
que eu não consegui identificar o seu carro?
Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.
Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?
Nada. Eu laço você na rua e você não pensou nada?
Não. Qual é o seu endereço?
Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom
lugar.
Estava na porta me esperando.
Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que
em qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente.
Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos
humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você
tinha ido à aula. Aula de quê?, eu disse.
Impostação
de voz.
Tenho uma filha que também estuda impostação de
voz. Você é atriz, não é?
Sou. De cinema.
Eu gosto
muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?
Só fiz um,
que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou
começando, posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela
parecia ter vinte e cinco.
Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a
pé na direção do restaurante Mário, na Rua Ataulfo de Paiva.
Fica muito
cheio em frente ao restaurante, eu disse.
O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela
disse.
Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.
Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso
sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar.
Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um
homem de meia-idade com um rapaz e uma moça. Apenas três outras mesas estavam
ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.
Ângela pediu
um Martini.
Você não bebe?, Ângela perguntou.
Às vezes.
Agora diga,
falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o bilhete?
Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse.
Existem duas hipóteses. A primeira é que você me
viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva
e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel
arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase
não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.
E a segunda hipótese?
Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de
pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você
encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o
número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam
para você.
E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse.
A segunda. Que você é uma puta, eu disse.
Ângela ficou bebendo o martini como se não tivesse
ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim,
querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha - era má atriz,
via-se que estava perturbada - e disse: você mesmo reconheceu que era um
bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.
Uma puta inteligente prepararia todos os
bilhetinhos em casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os seus
fregueses, eu disse.
E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a
verdadeira? Você acreditaria?
Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.
Como que não interessa?
Ela estava intrigada e não sabia o que fazer.
Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.
Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.
Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida.
Ângela tomou mais dois martinis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de
Ângela soava ligeiramente pastosa.
Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar
em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse.
Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando
de um gole o que restava na taça. Quero outro.
Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me
aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais
nada para mim, naquele momento interlocutório.
O que é que você faz?
Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu
disse.
Isso é verdade?
Você não viu o meu carro?
Você
pode ser um industrial.
Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu
disse.
Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho
de luz sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.
Não acredito numa só palavra do que você diz.
Foi a minha vez de fazer uma pausa.
Você tem
razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir
alguma coisa, eu disse.
Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu
rosto para o raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente.
Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém
fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela.
Ela também parecia o retrato antigo de um
desconhecido.
Olhei o relógio.
Vamos embora?, eu disse.
Entramos no
carro.
Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo
e dá errado, disse Ângela.
O azar de um é a sorte do outro, eu disse.
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que
acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me
acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu
disse.
Por quê?
Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu
edifício.
Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que
ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.
A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.
Acho
difícil.
Todos os
homens se apaixonam por mim.
Acredito.
E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é
melhor do que você, disse Ângela.
Um completa o outro, eu disse.] Ela saltou. Foi
andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu
tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que
bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia
muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto,
entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema?
Ninguém havia escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do para-lama,
jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente -
e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando -e logo
atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada,
apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo
televisão, um filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela
disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou
ter um dia terrível na companhia.
Felicidade
clandestina
Clarice
Lispector
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
A estrutura da bolha de
sabão
Lygia Fagundes Telles
Era o que ele estudava. "A estrutura, quer dizer,
a estrutura" - ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto
redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é
mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e
oco. "A estrutura da bolha de sabão, compreende?" Não o compreendia.
Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus
verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as
bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na
afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo
canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando
o peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte,
sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? "A estrutura" - ele
insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava
distância, cuidado, cuidadinho, ô! a paciência. A paixão.
No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima
meu corpo.
Estou
me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão
distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o
fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor
de transparências e membranas, condenado à ruptura.
Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua
superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos
e não enxergava. Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei
quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: "Vocês já se
conheciam?" Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava
dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de
egípcia se retraíam apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que
se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda
também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual,
à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das
bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos
divertíamos em dizer fragmentos de idéias, peças soltas de um jogo que
jogávamos meio ao acaso, sem encaixe.
Convidaram-me e sentei, os joelhos de ambos encostados
nos meus, a mesa pequena enfeixando copos e hálitos. Me refugiei nos cubos de
gelo amontoados no fundo do copo, ele podia estudar a estrutura do gelo, não
era mais fácil? Mas ela queria fazer perguntas. Uma antiga amizade? Uma antiga
amizade. Ah. Fomos colegas? Não, nos conhecemos numa praia, onde? Por aí, numa
praia. Ah. Aos poucos o ciúme foi tomando forma e transbordando espesso como um
licor azul-verde, do tom da pintura dos seus olhos. Escorreu pelas nossas roupas,
empapou a toalha da mesa, pingou gota a gota. Usava um perfume adocicado. Veio
a dor de cabeça: "Estou com dor de cabeça", repetiu não sei quantas
vezes. Uma dor fulgurante que começava na nuca e se irradiava até a testa, na
altura das sobrancelhas. Empurrou o copo de uísque. "Fulgurante."
Empurrou para trás a cadeira e antes que empurrasse a mesa ele pediu a conta.
Noutra ocasião a gente poderia se ver, de acordo? Sim, noutra ocasião, é
lógico. Na rua, ele pensou em me beijar de leve, como sempre, mas ficou
desamparado e eu o tranqüilizei, está bem, querido, está tudo bem, já entendi.
Tomo um táxi, vá depressa, vá. Quando me voltei, dobravam a esquina. Que
palavras estariam dizendo enquanto dobravam a esquina? Fingi me interessar pela
valise de plástico de xadrez vermelho, estava diante de uma vitrina de valises.
Me vi pálida no vidro. Mas como era possível. Choro em casa, resolvi. Em casa
telefonei a um amigo, fomos jantar e ele concluiu que o meu cientista estava
felicíssimo.
Felicíssimo, repeti quando no dia seguinte cedo ele
telefonou para explicar. Cortei a explicação com o felicíssimo e lá do outro
lado da linha senti-o rir como uma bolha de sabão seria capaz de rir. A única
coisa inquietante era aquele ciúme. Mudei logo de assunto com o licoroso
pressentimento de que ela ouvia na extensão, oh, o teatro. A poesia. Então ela
desligou.
O segundo encontro foi numa exposição de pintura. No
começo aquela cordialidade. A boca pródiga. Ele me puxou para ver um quadro de
que tinha gostado muito. Não ficamos distantes dela nem cinco minutos. Quando
voltamos, os olhos já estavam reduzidos aos dois riscos. Passou a mão na nuca.
Furtivamente acariciou a testa. Despedi-me antes da dor fulgurante.
Vai
virar sinusite, pensei. A sinusite do ciúme, bom nome para um quadro ou ensaio.
"Ele está doente, sabia? Aquele cara que estuda
bolhas, não é seu amigo?" Em redor, a massa fervilhante de gente, música.
Calor. Quem é que está doente? eu perguntei. Sabia perfeitamente que se tratava
dele mas precisei perguntar de novo, é preciso perguntar uma, duas vezes para
ouvir a mesma resposta, que aquele cara, aquele que estuda essa frescura da
bolha, não era meu amigo? Pois estava muito doente, quem contou foi a própria
mulher, bonita, sem dúvida, mas um tanto grosseira, fora casada com o primo de
um amigo, um industrial meio fascista que veio para cá com passaporte falso,
até a Interpol já estava avisada, durante a guerra se associou com um tipo que
se dizia conde italiano mas não passava de um contrabandista. Estendi a mão e agarrei seu braço porque a
ramificação da conversa se alastrava pelas veredas, mal podia vislumbrar o
desdobramento da raiz varando por entre pernas, sapatos, croquetes pisados,
palitos, fugia pela escada na descida vertiginosa até a porta da rua, espera!
eu disse. Espera. Mas que é que ele tem? Esse meu amigo. A bandeja de uísque
oscilou perigosamente acima do nível das nossas cabeças. Os copos tilintaram na
inclinação para a direita, para a esquerda, deslizando num só bloco na dança de
um convés na tempestade. O que tinha? O homem bebeu metade do copo antes de
responder: não sabia os detalhes e nem se interessara em saber, afinal, a única
coisa gozada era um cara estudar a estrutura da bolha, mas que idéia! Tirei-lhe o copo e bebi devagar o resto do
uísque com o cubo de gelo colado ao meu lábio, queimando. Não ele, meu Deus.
Não ele, eu repeti. Embora grave, custosamente minha voz varou todas as camadas
do meu peito até tocar no fundo onde as pontas todas acabam por dar, que nome tinha?
Esse fundo, perguntei e fiquei sorrindo para o homem e seu espanto.
Expliquei-lhe que era o jogo que eu costumava jogar com ele, com esse meu
amigo, o físico. O informante riu. "Juro que nunca pensei que fosse
encontrar no mundo um cara que estudasse um troço desses", resmungou ele
voltando-se rápido para apanhar mais dois copos na bandeja, ô! tão longe ia a
bandeja e tudo o mais, fazia quanto tempo? "Me diga uma coisa, vocês não
viveram juntos?" - lembrou-se o homem de perguntar. Peguei no ar o copo borrifando
na tormenta. Estava nua na praia. Mais ou menos, respondi.
Mais ou menos eu disse ao motorista que perguntou se eu
sabia onde ficava essa rua. Tinha pensado em pedir notícias por telefone mas a
extensão me travou. E agora ela abria a porta, bem-humorada. Contente de me
ver? A mim?! Elogiou minha bolsa. Meu penteado despenteado. Nenhum sinal da
sinusite. Mas daqui a pouco vai começar. Fulgurante.
"Foi mesmo um grande susto" - ela disse.
"Mas passou, ele está ótimo ou quase - acrescentou levantando a voz. Do
quarto ele poderia nos ouvir se quisesse. Não perguntei nada.
A casa. Aparentemente, não mudara, mas reparando
melhor, tinha menos livros. Mais cheiros. Flores de perfume ativo no vaso,
óleos perfumados nos móveis. E seu próprio perfume. Objetos frívolos - os
múltiplos - substituindo em profusão os únicos, aqueles que ficavam obscuros
nas antigas prateleiras da estante. Examinei-a enquanto me mostrava um tapete
que tecera nos dias em que ele ficou no hospital. E a fulgurante? Os olhos
continuavam bem abertos, a boca descontraída. Ainda não.
"Você poderia ter se levantado, hein, meu amor?
Mas anda muito mimado", disse ela quando entramos no quarto. E começou a
contar muito animada a história de um ladrão que entrara pelo porão da casa ao
lado, "a casa da mãezinha", acrescentou afagando os pés dele debaixo
da manta de lã. Acordaram no meio da noite com o ladrão aos berros pedindo
socorro com a mão na ratoeira, tinha ratos no porão e na véspera a mãezinha
armara uma enorme ratoeira para pegar o rei de todos, lembra, amor?
O amor estava de chambre verde, recostado na cama cheia
de almofadas. As mãos branquíssimas descansando entrelaçadas na altura do
peito. Ao lado, um livro aberto e cujo título deixei para ler depois e não
fiquei sabendo. Ele mostrou interesse pelo caso do ladrão mas estava distante
do ladrão, de mim e dela. De quando em quando me olhava interrogativo,
sugerindo lembranças mas eu sabia que era por delicadeza, sempre foi
delicadíssimo. Atento e desligado. Onde? Onde estaria com seu chambre largo
demais? Era devido àquelas dobras todas que fiquei com a impressão de que
emagrecera? Duas vezes empalideceu, ficou quase lívido.
Comecei a sentir falta de alguma coisa, era do cigarro?
Acendi um e ainda a sensação aflitiva de que alguma coisa faltava, mas o que
estava errado ali? Na hora da pílula lilás ela foi buscar o copo d'água e então
ele me olhou lá do seu mundo de estruturas. Bolhas. Por um momento relaxei
completamente: não sei onde está, mas sei que não está, eu disse e ele perguntou,
"Jogar?" Rimos um para o outro.
"Engole, amor, engole" - pediu ela
segurando-lhe a cabeça. E voltou-se para mim, "preciso ir aqui na casa da
mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um
pouco? Não demoro muito, a casa é ao lado", acrescentou. Ofereceu-me
uísque, não queria mesmo? Se quisesse, estava tudo na copa, uísque, gelo,
ficasse à vontade. O telefone tocando será que eu podia?...
Saiu
e fechou a porta. Fechou-nos. Então descobri o que estava faltando, ô! Deus.
Agora eu sabia que ele ia morrer.
Feliz
ano novo
Rubem
Fonseca
Vi
na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para
as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para
comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba,
vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos
macumbeiros.
Pereba
entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai
mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba
saiu e foi mijar na escada.
Onde
você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei,
porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa
que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô
morrendo de fome, disse Pereba.
De
manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de
sacanagem.
Não
conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui
na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele
aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba
sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz
quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos
uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang,
Outra bosta.
As
madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os
braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto,
acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não
têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida
delas é dar a xoxota por aí?
Pena
que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador,
cansado, doente.
Pereba,
você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar
pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os
olhos e manda brasa.
Eu
queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu
fudido.
Zequinha
entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou,
michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por
que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No
banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As
mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele
tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela
tava nua, disse Pereba.
Já
vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele
tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
Brincadeira,
eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon,
não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do
lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra
falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra
tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo?
Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O
Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava
daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu,
todo arrebentado.
Pior
foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando
sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois
de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só
tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra,
tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As
ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?,
disse Zequinha. Você tá louco.
Eu
ri.
Quais
são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada,
uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta
que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando
punheta?
Esperando
o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso
falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos.
Esvaziamos uma pitu.
Posso
ver o material?, disse Zequinha.
Descemos
pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona
Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona
Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O
Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já,
eu disse, está lá em cima.
A
velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela.
Cuidado,
meus filhos, ela disse.
Subimos
pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro
a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina,
tarratátátátá!, disse Zequinha.
É
antiga mas não falha, eu disse.
Zequinha
pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra
no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira,
bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele
pregado lá.
Botamos
tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando
é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia
2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do
ano.
Ele
é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É
vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto
Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É,
mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não
sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com
frescuras.
Você
já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não,
nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem
não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse
Zequinha.
Cara
importante faz o que quer, eu disse.
É
verdade, disse Zequinha.
Ficamos
calados, fumando.
Os
ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O
material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha
chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava
com fome.
Eu
tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá
cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados
tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e
colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O
fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse
Pereba.
Que
casa? Você tem alguma em vista?
Não,
mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei
a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro
Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e
vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos
um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não
davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o
lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo,
isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes
cantando. Botamos as meias na cara.
Cortei
com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles
estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É
um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem
quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba
e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas
cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei.
Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não
estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem
mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha
mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda
enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão
em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves,
vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?,
disse Pereba.
É
você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu
as escadas.
Inocêncio,
amarra os barbados.
Zequinha
amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que
encontrou.
Revistamos
os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e
talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as
jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba
desceu as escadas sozinho.
Cadê
as mulheres?, eu disse.
Engrossaram
e eu tive que botar respeito.
Subi.
A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra
que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal
paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha
batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de
roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá
do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis.
Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas
mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo
dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes
forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco,
enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o
quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com
cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da
colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as
calças e desci.
Vamos
comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão
estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda
mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então,
de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem
não faremos nada.
Fiquei
olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem
também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha
da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles
era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três
moscas no açucareiro.
Como
é seu nome?
Maurício,
ele disse.
Seu
Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele
se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito
obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os
senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso
olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um
gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este
bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu
Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na
parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho
para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei
bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O
impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente
e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um
panetone.
Viu,
não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem
que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os
caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia
nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você
aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de
cabelos compridos.
Por
favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse
Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê
como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi
bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na
porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo
chumbo grosso na madeira.
Eu
não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.
Não
vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não
estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher
que eu gosto.
E
você... Inocêncio?
Acho
que vou papar aquela moreninha.
A
garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela
sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era
executada no sofá.
Vamos
embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito
obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos.
Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse
para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e
volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este
edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material,
pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido
mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos
lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na
saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona
Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode
deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos.
Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis
beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando
o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor.
Feliz Ano Novo.
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